POR ANDRESSA RODRIGUES
Nas últimas décadas, a desigualdade
racial existente no Brasil foi evidenciada por inúmeros estudos estatísticos,
tendo como marco referencial as pesquisas de Nelson do Valle Silva e Carlos
Hasenbalg, ambas de 1979. A antes idolatrada democracia racial foi desta forma
desmascarada como mito, pois não condizia com os achados de pesquisa publicados
por esses estudos, que indicava a existência de um processo histórico e
persistente de marginalização do negro na hierarquia socioeconômica vigente.
Contudo, as causas e consequências
dessa desigualdade ainda não são objetos de consenso dentro do âmbito
acadêmico, uma vez que a denúncia dessa segregação veio acompanhada de um
contraponto: a noção de que, embora exista racismo na sociedade brasileira, em
se tratando de relações de sociabilidade e convívio entre brancos e negros, o
Brasil ainda estaria em uma posição mais privilegiada se comparado a países que
tiveram uma história de intensos conflitos e violência interracial, como as
leis Jim Crow nos Estados Unidos e o Apartheid na África do Sul. Todavia,
relatórios publicados nos últimos anos evidenciam um fenômeno contraditório a
essa noção, o genocídio do povo negro, decorrente não só da formulação de
políticas públicas que deixam de contemplar esse segmento da população, o que
poderia ser enquadrado como “racismo institucionalizado”, mas também da
marginalização histórica que aflige a população negra que a enclausura em
espaços flagelados pela miséria e pela insalubridade.
A partir desses achados um novo tipo
específico de violência surge: a violência racial, ou seja, aquela cujos
processos e consequências se direcionam a um grupo racial em particular, no
caso, a população negra. Rodnei Silva e Suelaine Carneiro, autores do relatórioViolência
Racial, uma leitura sobre os dados de homicídios no Brasil, apontam de
forma pertinente de que a violência contra o negro não se esgota apenas no
homicídio por ele sofrido, uma vez que “a preocupação com a violência deveria
ir além da brutalidade que se encerra na morte. Ela deveria ser apreendida
também no desrespeito, na negação, na violação, na coisificação, na humilhação,
na discriminação [do negro].” Acreditamos ser por essa perspectiva que devemos
discutir a violência a qual está submetida a população negra, de modo a poder
englobar todos os tipos de violência que esse segmento populacional sofre por
conta de sua posição social, tanto física quanto simbólica.
Um exemplo flagrante de violência
racial e que tomou os noticiários nos últimos meses, tanto da mídia tradicional
corporativa quanto nos espaços virtuais construídos pela mídia alternativa, o
midiativismo, se trata das consequências causadas pela militarização em curso
da periferia e da favela, que acaba resultando no acirramento dos conflitos
nesses espaços, com maior número de desaparecimentos, autos de resistência e
homicídios registrados. Vale destacar que tal violência atinge toda a população
das favelas, incluindo brancos pobres; contudo, o processo histórico que envolve
intrinsicamente a relação do povo negro com a favelização torna essa população
alvo prioritário imposta pelo desenvolvimento da militarização.
Cabe aqui uma breve explicação sobre
a marginalização do favelado. A imagem forjada do negro favelado como marginal,
adepto ou conivente com o banditismo, tem forte influência na forma como é
concebida a abordagem das forças policiais em indivíduos que se encaixem nos
parâmetros identitários desse estigma, assim como influencia também o
imaginário da classe média urbana que, sem dúvidas, é uma das bases de apoio e
legitimação ao projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) e a
crescente militarização das favelas. O jovem negro é, portanto, o primeiro em
ordem de importância para “tomar uma dura” que normalmente é vexatória,
agressiva e extremamente humilhante, diferentemente do modo como se dá a
abordagem a um branco de classe média em situação semelhante.
Os casos recentes dos assassinatos do
dançarino Douglas (DG), da dona-de-casa Cláudia Silva Ferreira e do pedreiro
Amarildo Dias de Souza, todos negros, ilustram esse cenário. Somente ao branco,
mais especificamente à classe média branca, é dado o benefício da dúvida, o
direito à defesa; ao negro, logo enquadrado como marginal ou bandido, em acordo
com esse imaginário do estigma racial, é imposta a pena capital, sem direito a
defesa ou presunção de inocência, colocando-o à mercê do julgamento do
policial.
Como abordamos acima, não é apenas a
violência física que viola os corpos negros; além disso, toda uma gama de
valores erroneamente atribuídos, direitos negados, ausência de políticas
públicas focalizadas e uma cultura de perseguição e marginalização coloca o
negro em uma posição estrutural subalterna no quadro social brasileiro. Podemos
exemplificar alguns desses fatores com fenômenos recentes como, além do
genocídio do povo negro, a perseguição imposta às religiões de matriz africana,
a repressão à cultura dos rolezinhos e dos bailes funks, o quadro desolador de
estrutura de saneamento básico em periferias e favelas, a baixa inserção de
pessoas negras no mercado de trabalho, no sistema educacional e até no campo
simbólico da teledramaturgia, onde o negro sistematicamente assume um
papel subalterno ou de vilão em relação ao branco, via de regra, sempre em
papéis de não-protagonistas.
Ainda no campo simbólico, onde a
violência não é menos concreta, não custa lembrar do concurso Miss Salvador,
realizado em 2013, na capital da Bahia, onde todas as candidatas eram brancas
em um estado onde os negros correspondem a 76,3% da população total, o que
demonstra a imposição de um parâmetro ou ideal de beleza propagandeado por uma
sociedade que deseja a todo custo rejeitar sua negritude e os traços físicos e
estéticos consequentes da predominância negra e afrodescendente na população
como um todo. A violência contra o povo negro, portanto, vai além daquela
de ordem física, como no caso dos homicídios e desaparecimentos – ela também se
reproduz no âmbito simbólico, da moral e da cultura.
Willem Schinkel, ao trabalhar com
o conceito de violência, a define como umaredução do ser, ou seja, a
redução de uma pessoa a apenas um de seus aspectos entre tantos outros
desdobramentos possíveis em uma dada situação; as alternativas são inúmeras,
mas a ação violenta direcionada a essa pessoa reduz e limita o espectro de
possibilidades, onde a situação desdobra-se em apenas um
resultado possível. Logo, a violência racial estaria por reduzir as
possibilidades de ser da pessoa negra. Quando certos valores
morais, estéticos e simbólicos, tradicionalmente brancos, são considerados como
legítimos e como padrões os quais toda a sociedade deve seguir, temos um caso
de violência simbólica, onde o negro é obrigado a sentir vergonha de si e abrir
mão de valores que não se encaixam no padrão hegemônico, causando assim baixa
autoestima e sentimentos de inferioridade e incapacidade.
Em concordância com essa constatação,
algumas pesquisas que buscaram entrevistar candidatos negros ao vestibular
apontam que estes normalmente optam por concorrer a cursos de baixa
concorrência por se considerarem incapazes de competir no acesso a cursos mais
valorizados, como medicina ou direito. Esse sentimento de incapacidade não é
fruto apenas da má qualidade das escolas públicas nas quais eles estudaram, mas
também da própria discriminação racial que eles são obrigados a conviver
diariamente nessas escolas, onde professores acabam por dar mais atenção aos
seus estudantes brancos, tendendo a acreditar que seus alunos negros não são
capazes de desenvolver o aprendizado.
À visto disso, lutar contra o
genocídio do povo negro é lutar contra todas as formas de opressão direcionadas
a essa população, é lutar contra a redução do negro, contra a limitação de suas
possibilidades e escolhas, uma vez que a violência simbólica na qual ele está
submetido faz parte de um processo maior de marginalização e discriminação
contra pessoas negras. Tal processo acaba por culminar no enclausuramento desse
segmento populacional em espaços como a favela e a periferia, locais onde a
vida cotidiana se encontra atualmente controlada pela militarização, além de
sofrer com a invisibilidade, transformando-os em espaços esquecidos ou
negligenciados pelas políticas não só de segurança pública, mas por outras que
visem enriquecer a vida e o convívio cotidiano. Lutar contra o genocídio é,
antes de tudo, lutar pelo empoderamento do negro frente a uma sociedade que a
todo momento não hesita em lhe impor um papel de inferioridade, os reduzindo a
um confinamento onde tudo que ele deve fazer é reproduzir os valores e os
padrões hegemônicos, tradicionalmente brancos, em detrimento de seus próprios.
É com base nestas reflexões que ressaltamos aqui a importância do engajamento
de toda a sociedade nas mobilizações puxadas pelo movimento negro, como as
Marchas contra o Genocídio do Povo Negro, que terão amplitude nacional e visam
chamar atenção para os alarmantes indicadores referentes à violência
racial verificados nos dados apresentados.
Referências:
https://daslutas.wordpress.com/2014/06/19/violencia-racial-a-tentativa-de-reducao-do-ser-negro.
Acessado em 05/11/2014.
